Concerto
Concerto de encerramento
Sábado, 30 de novembro, às 20h
Teatro Sesc Glória
Av. Jerônimo Monteiro, 428 - Centro, Vitória - ES, Brasil

Sobre o espetáculo
Presente na cultura germânica desde a Idade Média, o mito do pacto fáustico — ou seja, da venda da alma ao Diabo em busca de juventude, riqueza, poder, conhecimento, etc. — atravessou séculos e países em diversas releituras artísticas e não deixa de dialogar com o contexto das novas tecnologias de informação e comunicação, reverberando questões contemporâneas, como a busca irrefreada do domínio do homem sobre a natureza, a idealização de uma vida perfeita e a tirania de certos padrões de beleza.
Há referências à existência de um Fausto histórico, um homem chamado Georg (ou Johann em algumas fontes) Faust, também conhecido como Doutor Fausto, que teria vivido na região da Suábia (sudoeste da Alemanha) entre 1480 e 1540 e se notabilizado por seu desempenho na arte da magia. Martinho Lutero, líder da Reforma Protestante, parece ter sido o primeiro a apontar uma relação dessa figura controversa com o Diabo. A brutalidade de sua morte, encontrado caído ao lado da cama com o rosto virado para trás, impressionou a população local, reforçando a atribuição a causas sobrenaturais. A estudiosa de literatura Silmara Rodrigues destaca que sua representação na literatura se configuraria como um mito do individualismo no contexto da transição da Idade Média para a era moderna.
A história foi se propagando oralmente, até que foi registrada em livro por Johann Spies, em 1587, com o título História do Doutor Johann Faust, o célebre mago e nigromante, como ele se vendeu ao Diabo por um período fixado, as estranhas aventuras que viveu nesse entretempo, alguns atos de magia que praticou, até o momento em que finalmente recebeu a merecida paga. Extraída na maior parte dos seus escritos póstumos, recolhidos e impressos para servirem como horrível precedente, abominável exemplo e sincera advertência a todas as pessoas presunçosas, curiosas e ímpias. Essa obra ficou conhecida como Faustbuch (livro de Fausto), e alimentaria a imaginação de muitos autores.
Entre as versões literárias que utilizam o mito mais ou menos diretamente, podemos citar a peça do inglês Christopher Marlowe A trágica história da vida e morte do Doutor Fausto (1582), o poema-peça Fausto, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832); Uma cena de Fausto (1826), de Alexander Puchkin; e O Mestre e Margarida (1989), romance de Mikhail Bulgákov – ambos autores russos; Fausto: uma tragédia subjectiva, de Fernando Pessoa, publicado postumamente em 1988; Meu Fausto (1946) do francês Paul Valéry; Mefisto (1936), do alemão Klaus Mann; e o romance Doutor Fausto (1947), de seu pai, Thomas Mann – estes três últimos fortemente marcados pelas duas guerras mundiais na primeira metade do século XX.
Também encontramos ressonâncias do mito fáustico em duas obras brasileiras – o romance Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa e o conto A Igreja do Diabo (1884), de Machado de Assis.
A mais célebre de todas essas narrativas é certamente o monumental poema trágico de Goethe. Marcus Vinicius Mazzari, autor do livro A Dupla Noite das Tílias: História e Natureza no Fausto de Goethe (2020), destaca as relações dessa obra, que considera o clássico mais moderno da literatura mundial, com a revolução cultural, as pressões da tecnologia e a crise do desenvolvimento, os desmatamentos, o aquecimento global e a poluição do planeta.
Também são impactantes as relações que se podem estabelecer entre o pacto fáustico e a comunicação na sociedade contemporânea. O teórico da comunicação Neil Postman observa que toda nova tecnologia “sempre nos dá algo, mas também sempre nos tira algo importante”. O preço, neste caso, seria um enfraquecimento da nossa relação com a cultura escrita – especialmente com conteúdos de fôlego – e da capacidade de leitura, atenção e memória das pessoas.
É igualmente longa a lista de adaptações musicais que recebeu a narrativa fáustica, especialmente a partir da obra goetheana: mais de quinze óperas, música de cena, obras sinfônicas, canções e dois oratórios. A primeira parte deste concerto contempla exclusivamente composições baseadas nesse autor.
Iniciamos com Faust Overture, da compositora alemã Emilie Mayer (1812-1883). Discípula particular de Carl Loewe (que, por sinal, também compôs um lied sobre a cena de Margarida na roca, do Fausto), numa época em que mulheres não eram admitidas na universidade, teria ouvido de seu mestre, espantado com seu enorme talento ainda por lapidar: “Você sabe nada e tudo ao mesmo tempo”!
Em seguida, temos a ária Faites-lui mes aveux, da ópera Faust, do francês Charles Gounod (1818-1893). Siebel, um adolescente apaixonado por Marguerite, dirige-se às rosas vermelhas que tem nas mãos pedindo que declarem, em seu nome, o amor que até então mantém em segredo. Em meio à ária, as rosas murcham, conforme Mefistófeles lhe havia predito. Vendo as flores voltarem ao seu esplendor ao molhar as mãos em água benta, o jovem ri do diabo.
Mefistofele é a única ópera completa do italiano Arrigo Boito (1842-1918), célebre libretista de Verdi. Em Giunto sul passo estremo, Fausto, que havia sido rejuvenescido por Mefistófeles, volta a ser um homem idoso. Pressentindo a chegada do fim de sua vida, reflete sobre ela e conclui que não experienciou, nem antes e nem depois do pacto, a perfeição por ele tão almejada. Não perde, contudo, a esperança de sua redenção.
De Giuseppe Verdi (1813-1901) temos a canção Perduta ho la pace. Composta originalmente para voz e piano em 1838, integra a série Seste Romanze I e utiliza um trecho do poema de Goethe em tradução italiana de Luigi Ballestri. Curiosamente, trata-se do mesmíssimo texto utilizado no famoso lied Gretchen am Spinnrade (1814) de Schubert, inclusive na mesma tonalidade de ré menor. Diferentemente, porém da agitação que permeia toda a canção de Schubert, com o acompanhamento que sugere o giro de uma roca, Verdi inicia em uma atmosfera de marcha fúnebre, apresentando a angústia de maneira gradual e com uma alternância de doçura e intensidade ao longo da evocação que Margarida faz do contato com Fausto.
Encerrando a primeira parte, ouviremos uma ária da ópera The Rake’s Progress, de Igor Stravinsky (1882-1971), com libreto do famoso poeta anglo-americano W.H. Auden e de Chester Kallman. Escrita quando o compositor já morava nos Estados Unidos, foi inspirada no Fausto de Goethe e em uma série de gravuras de William Hogarth (século XVIII). Conta a história da ascensão e queda de Tom Rakewell, em meio a desejos e tentações (poder, dinheiro, luxúria, inveja, etc.), o compositor nomeava o tema de sua obra como “o diabo do capitalismo’’. Pensando no contexto atual, podemos até mesmo estabelecer uma relação da frase popular “Mãos, corações e cabeças vazias são a oficina do Diabo”, cantada no quinteto final, com os prejuízos do infinito scrollar das redes sociais. Em No word for Tom, Anne Truelove, sozinha à noite no jardim de sua casa, decide ir a Londres em busca de Tom, pois, apesar de ter sido abandonada pelo noivo, sente que ele precisa de sua ajuda.
A segunda parte do concerto é dedicada às óperas onde questões políticas se mesclam aos dramas pessoais das personagens, em distintos contextos (Império Romano, Espanha dos séculos XVI e XVIII e Roma do início do século XIX).
Ouviremos a abertura de La Clemenza di Tito, última ópera composta por Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), seguida da ária Parto parto, ma tu ben mio, em que Sesto se angustia diante da tarefa a ele conferida por sua amada Vitelia: assassinar seu grande amigo Tito, imperador de Roma.
Teremos também Oh war' ich schon mit dir vereint', de Fidelio, única ópera de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Esta obra tornou-se representativa da luta por liberdade e justiça que permeava diversos movimentos sociais na Europa do período. Nesta ária, Marzelline expressa seu desejo de se casar com Fidelio, sem saber que este, na verdade, era Leonora disfarçada de homem para se infiltrar na prisão, para onde suspeita ter sido levado seu esposo Florestan, em virtude de uma intriga política.
Composta originalmente em francês, no estilo da Grand Opéra, Don Carlos (ou Don Carlo, na versão italiana), de Verdi, também se passa na Espanha, mas do século XVI. Desta ópera, ouviremos o Prelúdio. Assim como a peça Don Carlos, Infante de Espanha, de Friedrich Schiller (1759-1805), que a inspirou, a ópera toma liberdades artísticas a partir de episódios históricos. Carlos, príncipe de Astúrias, está noivo de Elisabeth de Valois. Esta, porém, acaba se casando com Filipe II, pai de Carlos, como parte de um tratado de paz. Faz-se presente no enredo a crítica ao autoritarismo real e ao domínio da Igreja.
Encerrando este concerto e o Festival, temos a célebre e comovente ária E lucevan le stelle, da ópera Tosca, de Giacomo Puccini (1858-1924), que se passa na Roma de 1800, agitada pela tensão entre a monarquia e as forças napoleônicas. O pintor Mario Cavaradossi, preso por ter escondido em sua casa um amigo prisioneiro político foragido e também por suas próprias convicções revolucionárias, aguarda sua execução. Nesse momento tão desesperador e dolorosamente humano, evoca as carícias da amada Tosca e afirma seu amor à vida.
Guilhermina Lopes


Assista à transmissão

Ficha Técnica
Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito Santo
Flauta: Danilo Klein
Piccolo: José Benedito Gomes
Oboé: Alexandre Barros
Oboé II / Corne Inglês: Jonathan Yoshikawa
Clarinete: Danilo Soares
Clarone: Cristiano Costa
Fagote: Deyvisson Vasconcelos
Contrafagote: Felipe Reis
Trompas: Guilherme Catão, Alan Vinicius, Jdiordy Lucca e Ury Vieira
Trompetes: Renan Sena, Mizael de Andrade e Anderson Ferreira
Trombones: Fredson Luiz Monteiro, Ricley Ribeiro e Jorge Luiz de Melo
Tuba: Deivid Peleje
Percussão/Figuração: Cristiano Charles, Daniel Lima, Léo de Paula e Gabriel Novais
Harpa: Maíni Moreno
Violinos 1: Diego Adinolfi (spalla), Jacqueline Lima, Felipe Ribeiro, Wagner de Souza, Oscar Orjuela e Emily Cristina
Violinos 2: Dennys Serafim, Gabriel Alomba, Lucas Rodrigues, Kedma Johnson, Karen Silva e Wellington Rodrigues
Violas: Rodney Silveira, Ildefonso Barros, Daniel Amaral e Rafael Nunes
Violoncelos: Jonathan Azevedo, Christian Munawek, Jessica Vianna e Fabrício Moura
Contrabaixos: Felipe Medeiros, Leandro Nery e Jean Almeida

1º Bloco
Arranjo Lipe Portinho
Sound of Shell
E. Mayer
Overture de Faust
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo
C. Gounod
Faites-lui mes aveux de Faust
A. Boito
Giunto sul passo estremo de Mefi stofele
G. Verdi
Perduta ho la pace
I. Stravinsky
No word from Tom / I go I go to him de The Rake’s Progress
2º Bloco
W. A. Mozart
Overture de La Clemenza di Tito
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo
W. A. Mozart
Parto parto, ma tu ben mio de La Clemenza di Tito
L. V. Beethoven
Oh war’ ich schon mit dir vereint’ de Fidelio
G. Verdi
Preludio II de Don Carlo
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo
G. Puccini
E lucevan le stelle de Tosca
OSES e cantores vencedores do Concurso Natércia Lopes
Solistas: Débora Neves (Soprano), Marcela Vidra (Mezzo Soprano) e Giovanni Marquezeli (Tenor)
Participação especial: Natércia Lopes
Regência: Helder Trefzger

1º Bloco
Arranjo Lipe Portinho
Sound of Shell
E. Mayer
Overture de Faust
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo
C. Gounod
Faites-lui mes aveux de Faust
A. Boito
Giunto sul passo estremo de Mefi stofele
G. Verdi
Perduta ho la pace
I. Stravinsky
No word from Tom / I go I go to him de The Rake’s Progress
2º Bloco
W. A. Mozart
Overture de La Clemenza di Tito
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo
W. A. Mozart
Parto parto, ma tu ben mio de La Clemenza di Tito
L. V. Beethoven
Oh war’ ich schon mit dir vereint’ de Fidelio
G. Verdi
Preludio II de Don Carlo
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo
G. Puccini
E lucevan le stelle de Tosca
OSES e cantores vencedores do Concurso Natércia Lopes
Solistas: Débora Neves (Soprano), Marcela Vidra (Mezzo Soprano) e Giovanni Marquezeli (Tenor)
Participação especial: Natércia Lopes
Regência: Helder Trefzger



Sobre o espetáculo
Presente na cultura germânica desde a Idade Média, o mito do pacto fáustico — ou seja, da venda da alma ao Diabo em busca de juventude, riqueza, poder, conhecimento, etc. — atravessou séculos e países em diversas releituras artísticas e não deixa de dialogar com o contexto das novas tecnologias de informação e comunicação, reverberando questões contemporâneas, como a busca irrefreada do domínio do homem sobre a natureza, a idealização de uma vida perfeita e a tirania de certos padrões de beleza.
Há referências à existência de um Fausto histórico, um homem chamado Georg (ou Johann em algumas fontes) Faust, também conhecido como Doutor Fausto, que teria vivido na região da Suábia (sudoeste da Alemanha) entre 1480 e 1540 e se notabilizado por seu desempenho na arte da magia. Martinho Lutero, líder da Reforma Protestante, parece ter sido o primeiro a apontar uma relação dessa figura controversa com o Diabo. A brutalidade de sua morte, encontrado caído ao lado da cama com o rosto virado para trás, impressionou a população local, reforçando a atribuição a causas sobrenaturais. A estudiosa de literatura Silmara Rodrigues destaca que sua representação na literatura se configuraria como um mito do individualismo no contexto da transição da Idade Média para a era moderna.
A história foi se propagando oralmente, até que foi registrada em livro por Johann Spies, em 1587, com o título História do Doutor Johann Faust, o célebre mago e nigromante, como ele se vendeu ao Diabo por um período fixado, as estranhas aventuras que viveu nesse entretempo, alguns atos de magia que praticou, até o momento em que finalmente recebeu a merecida paga. Extraída na maior parte dos seus escritos póstumos, recolhidos e impressos para servirem como horrível precedente, abominável exemplo e sincera advertência a todas as pessoas presunçosas, curiosas e ímpias. Essa obra ficou conhecida como Faustbuch (livro de Fausto), e alimentaria a imaginação de muitos autores.
Entre as versões literárias que utilizam o mito mais ou menos diretamente, podemos citar a peça do inglês Christopher Marlowe A trágica história da vida e morte do Doutor Fausto (1582), o poema-peça Fausto, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832); Uma cena de Fausto (1826), de Alexander Puchkin; e O Mestre e Margarida (1989), romance de Mikhail Bulgákov – ambos autores russos; Fausto: uma tragédia subjectiva, de Fernando Pessoa, publicado postumamente em 1988; Meu Fausto (1946) do francês Paul Valéry; Mefisto (1936), do alemão Klaus Mann; e o romance Doutor Fausto (1947), de seu pai, Thomas Mann – estes três últimos fortemente marcados pelas duas guerras mundiais na primeira metade do século XX.
Também encontramos ressonâncias do mito fáustico em duas obras brasileiras – o romance Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa e o conto A Igreja do Diabo (1884), de Machado de Assis.
A mais célebre de todas essas narrativas é certamente o monumental poema trágico de Goethe. Marcus Vinicius Mazzari, autor do livro A Dupla Noite das Tílias: História e Natureza no Fausto de Goethe (2020), destaca as relações dessa obra, que considera o clássico mais moderno da literatura mundial, com a revolução cultural, as pressões da tecnologia e a crise do desenvolvimento, os desmatamentos, o aquecimento global e a poluição do planeta.
Também são impactantes as relações que se podem estabelecer entre o pacto fáustico e a comunicação na sociedade contemporânea. O teórico da comunicação Neil Postman observa que toda nova tecnologia “sempre nos dá algo, mas também sempre nos tira algo importante”. O preço, neste caso, seria um enfraquecimento da nossa relação com a cultura escrita – especialmente com conteúdos de fôlego – e da capacidade de leitura, atenção e memória das pessoas.
É igualmente longa a lista de adaptações musicais que recebeu a narrativa fáustica, especialmente a partir da obra goetheana: mais de quinze óperas, música de cena, obras sinfônicas, canções e dois oratórios. A primeira parte deste concerto contempla exclusivamente composições baseadas nesse autor.
Iniciamos com Faust Overture, da compositora alemã Emilie Mayer (1812-1883). Discípula particular de Carl Loewe (que, por sinal, também compôs um lied sobre a cena de Margarida na roca, do Fausto), numa época em que mulheres não eram admitidas na universidade, teria ouvido de seu mestre, espantado com seu enorme talento ainda por lapidar: “Você sabe nada e tudo ao mesmo tempo”!
Em seguida, temos a ária Faites-lui mes aveux, da ópera Faust, do francês Charles Gounod (1818-1893). Siebel, um adolescente apaixonado por Marguerite, dirige-se às rosas vermelhas que tem nas mãos pedindo que declarem, em seu nome, o amor que até então mantém em segredo. Em meio à ária, as rosas murcham, conforme Mefistófeles lhe havia predito. Vendo as flores voltarem ao seu esplendor ao molhar as mãos em água benta, o jovem ri do diabo.
Mefistofele é a única ópera completa do italiano Arrigo Boito (1842-1918), célebre libretista de Verdi. Em Giunto sul passo estremo, Fausto, que havia sido rejuvenescido por Mefistófeles, volta a ser um homem idoso. Pressentindo a chegada do fim de sua vida, reflete sobre ela e conclui que não experienciou, nem antes e nem depois do pacto, a perfeição por ele tão almejada. Não perde, contudo, a esperança de sua redenção.
De Giuseppe Verdi (1813-1901) temos a canção Perduta ho la pace. Composta originalmente para voz e piano em 1838, integra a série Seste Romanze I e utiliza um trecho do poema de Goethe em tradução italiana de Luigi Ballestri. Curiosamente, trata-se do mesmíssimo texto utilizado no famoso lied Gretchen am Spinnrade (1814) de Schubert, inclusive na mesma tonalidade de ré menor. Diferentemente, porém da agitação que permeia toda a canção de Schubert, com o acompanhamento que sugere o giro de uma roca, Verdi inicia em uma atmosfera de marcha fúnebre, apresentando a angústia de maneira gradual e com uma alternância de doçura e intensidade ao longo da evocação que Margarida faz do contato com Fausto.
Encerrando a primeira parte, ouviremos uma ária da ópera The Rake’s Progress, de Igor Stravinsky (1882-1971), com libreto do famoso poeta anglo-americano W.H. Auden e de Chester Kallman. Escrita quando o compositor já morava nos Estados Unidos, foi inspirada no Fausto de Goethe e em uma série de gravuras de William Hogarth (século XVIII). Conta a história da ascensão e queda de Tom Rakewell, em meio a desejos e tentações (poder, dinheiro, luxúria, inveja, etc.), o compositor nomeava o tema de sua obra como “o diabo do capitalismo’’. Pensando no contexto atual, podemos até mesmo estabelecer uma relação da frase popular “Mãos, corações e cabeças vazias são a oficina do Diabo”, cantada no quinteto final, com os prejuízos do infinito scrollar das redes sociais. Em No word for Tom, Anne Truelove, sozinha à noite no jardim de sua casa, decide ir a Londres em busca de Tom, pois, apesar de ter sido abandonada pelo noivo, sente que ele precisa de sua ajuda.
A segunda parte do concerto é dedicada às óperas onde questões políticas se mesclam aos dramas pessoais das personagens, em distintos contextos (Império Romano, Espanha dos séculos XVI e XVIII e Roma do início do século XIX).
Ouviremos a abertura de La Clemenza di Tito, última ópera composta por Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), seguida da ária Parto parto, ma tu ben mio, em que Sesto se angustia diante da tarefa a ele conferida por sua amada Vitelia: assassinar seu grande amigo Tito, imperador de Roma.
Teremos também Oh war' ich schon mit dir vereint', de Fidelio, única ópera de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Esta obra tornou-se representativa da luta por liberdade e justiça que permeava diversos movimentos sociais na Europa do período. Nesta ária, Marzelline expressa seu desejo de se casar com Fidelio, sem saber que este, na verdade, era Leonora disfarçada de homem para se infiltrar na prisão, para onde suspeita ter sido levado seu esposo Florestan, em virtude de uma intriga política.
Composta originalmente em francês, no estilo da Grand Opéra, Don Carlos (ou Don Carlo, na versão italiana), de Verdi, também se passa na Espanha, mas do século XVI. Desta ópera, ouviremos o Prelúdio. Assim como a peça Don Carlos, Infante de Espanha, de Friedrich Schiller (1759-1805), que a inspirou, a ópera toma liberdades artísticas a partir de episódios históricos. Carlos, príncipe de Astúrias, está noivo de Elisabeth de Valois. Esta, porém, acaba se casando com Filipe II, pai de Carlos, como parte de um tratado de paz. Faz-se presente no enredo a crítica ao autoritarismo real e ao domínio da Igreja.
Encerrando este concerto e o Festival, temos a célebre e comovente ária E lucevan le stelle, da ópera Tosca, de Giacomo Puccini (1858-1924), que se passa na Roma de 1800, agitada pela tensão entre a monarquia e as forças napoleônicas. O pintor Mario Cavaradossi, preso por ter escondido em sua casa um amigo prisioneiro político foragido e também por suas próprias convicções revolucionárias, aguarda sua execução. Nesse momento tão desesperador e dolorosamente humano, evoca as carícias da amada Tosca e afirma seu amor à vida.
Guilhermina Lopes